Ajuste de água na prática: aplicações em três estilos de cerveja
Introdução: a água como elemento final (e essencial)
Neste episódio bônus, que encerra a série sobre água no Brassagem Forte, Henrique Boaventura e Gabriela Lando, a Química Cervejeira, se aprofundam na aplicação prática dos conhecimentos discutidos em episódios anteriores.
A proposta? Ajustar a água para três estilos diferentes de cerveja utilizando dois perfis opostos: uma água de superfície (pouco mineralizada) e uma água de poço (alta alcalinidade).
O objetivo aqui não é apenas aplicar concentrações em um software como Brewfather ou Beersmith, mas entender o raciocínio por trás dos ajustes, seus impactos sensoriais e técnicos, e como alcançar o equilíbrio necessário para extrair o melhor de cada receita.
É mais um episódio com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis. O papo tá imperdível!
O que nos ensinou John Palmer?
Antes de entrar nos números, Gabriela resgata conceitos fundamentais do livro Water, de John Palmer:
- Objetivo da correção da água: melhorar o sabor da cerveja, nunca complicar o processo.
- Menos é mais: evitar excesso de mineralização, respeitando os limites recomendados para cada mineral.
- Repetição e calibração: são necessários de 3 a 5 lotes para encontrar o ponto ideal.
- Faixa de pH ideal da mostura: entre 5,2 e 5,6. Medir sempre com pH-metro calibrado.
- Evite pressa e exageros: “Meça duas vezes, adicione uma.”
- Não tenha medo de errar: experimente, mas com responsabilidade técnica e sanitária.
Os perfis de água utilizados
Água de superfície (padrão de rede urbana)
- pH: 6,2
- Cálcio (Ca): 6 ppm
- Magnésio (Mg): 2 ppm
- Sódio (Na): 5 ppm
- Cloreto (Cl): 12 ppm
- Sulfato (SO₄): 15 ppm
- Bicarbonato (HCO₃): 10 ppm
- Alcalinidade: 8 ppm
- Alcalinidade residual: 2,5 ppm
Água de poço (alta alcalinidade)
- pH: 7,1
- Cálcio: 35 ppm
- Magnésio: 7 ppm
- Sódio: 13 ppm
- Cloreto: 15 ppm
- Sulfato: 0 ppm (abaixo do limite de detecção)
- Bicarbonato: 160 ppm
- Alcalinidade: 131 ppm
- Alcalinidade residual: 102 ppm
Água | Superficial (S) | Poço (P) |
---|---|---|
pH | 6,2 | 7,1 |
Ca2+(cálcio) | 6 ppm | 35 ppm |
Mg2+ (magnésio) | 2 ppm | 7 ppm |
Na+ (sódio) | 5 ppm | 13 ppm |
Cl– (cloreto) | 12 ppm | 15 ppm |
SO42- (sulfato) | 15 ppm | 0 ppm |
HCO3– (bicarbonato) | 10 ppm | 160 ppm |
Alcalinidade | 8 ppm | 131 ppm |
RA | 2,5 (3 no Brewfather) | 102 |
Estudo de Caso 1: Cream Ale
Características do estilo
A Cream Ale é uma cerveja leve, limpa, neutra, refrescante e com leve caráter maltado. Altamente carbonatada, é ideal para consumo em atividades ao ar livre, com atenuação elevada e pouco amargor.
Receita base (brew in a bag)
- 4,5 kg de malte Pilsen
- 500 g de milho em flocos
- 150 g de açúcar comum
- Volume total de água: 34 L
- Volume final de mostura: 21 L
- Eficiência: 70%
Diretrizes de perfil de água (segundo Palmer)
Para uma cerveja clara, leve e com amargor de baixo a médio:
- Cálcio: 50–100 ppm
- Magnésio: até 30 ppm
- Cloreto: até 100 ppm
- Sulfato: até 50 ppm
- Razão Sulfato/Cloreto: ~1,3
- Alcalinidade residual: entre -30 e 0 ppm
Ajuste da água de superfície
Problema: Baixos níveis de cálcio e magnésio.
Solução proposta:
- Aumentar cálcio para 60 ppm
- Aumentar magnésio para 10 ppm (opcional)
Impacto da alteração:
- Com cálcio e magnésio: alcalinidade residual = -40
- Apenas cálcio: alcalinidade residual = -36
Adição de sais (para 34 L de água):
- 3 g de cloreto de cálcio (CaCl₂)
- 3,3 g de sulfato de cálcio (CaSO₄)
Resultado:
- Sulfato = 70 ppm
- Cloreto = 55 ppm
- Razão ≈ 1,3
- Alcalinidade residual = -31
Nota: Magnésio poderia ser adicionado, mas não foi neste caso para evitar ultrapassar a proporção ideal e não carregar o perfil sensorial.
Ajuste da água de poço
Problema: Alcalinidade muito elevada (102 ppm).
Adição dos mesmos sais (CaCl₂ e CaSO₄):
- 2,8 g de cloreto de cálcio
- 4,8 g de sulfato de cálcio
Resultado:
- Cálcio = 87 ppm
- Alcalinidade residual = 65 ppm
Solução complementar:
- Acidificação com ácido lático a 80%
- Previsão de adição: 4,5 mL para alcançar pH 5,6
Alerta importante:
- Não confiar 100% nas previsões do Brewfather; sempre usar pH-metro calibrado durante a mostura.
Cream Ale | S (início) | S (final) | P (início) | P (final) |
Ca2+ | 6 ppm | 53 ppm | 35 ppm | 86 ppm |
Mg2+ | 2 ppm | 2 ppm | 7 ppm | 7 ppm |
Na+ | 5 ppm | 5 ppm | 13 ppm | 13 ppm |
Cl– | 12 ppm | 55 ppm | 15 ppm | 55 ppm |
SO42- | 15 ppm | 70 ppm | 0 ppm | 70 ppm |
HCO3– | 10 ppm | – | 160 ppm | – |
Alcalinidade | 8 ppm | – | 131 ppm | – |
RA | 3 | -31 | 102 | 65 |
Acidificação? | Talvez | Sim | ||
Adições | 3 g de cloreto de cálcio (CaCl2) 3,3 g de sulfato de cálcio (CaSO4) | 2,5 g de cloreto de cálcio (CaCl2) 4,2 g de sulfato de cálcio (CaSO4) | ||
Volume | 34 L de água |
Considerações técnicas importantes
- Sais sempre vêm com nome e sobrenome: usar cloreto de cálcio e sulfato de cálcio implica em adicionar tanto o cátion (Ca²⁺) quanto o ânion (Cl⁻ ou SO₄²⁻). Isso afeta múltiplos parâmetros.
- O pH é logarítmico, não linear: pequenas adições de ácido podem ter impactos desproporcionais. Ajuste com calma e com acompanhamento em tempo real.
- Só ajuste pH depois da adição do malte: os maltes afetam fortemente o pH da mostura, especialmente maltes escuros ou cristal.
- O ácido lático é o mais indicado para ajuste de pH: o fosfórico pode interferir com o cálcio e prejudicar o processo.
Estudo de Caso 2: American IPA
Características do estilo
Segundo o BJCP, a American IPA é uma cerveja clara, de teor alcoólico moderadamente alto, com destaque para o lúpulo — tanto no aroma quanto no amargor. Seu perfil de fermentação é limpo, com final seco e amargor assertivo.
Receita utilizada
Baseada na Punk IPA da BrewDog:
- 6 kg de malte Pale
- 330 g de Caramunique I
- Mostura com 35,5 L de água, fervura com 31,8 L
- Lote final: 21 L
Diretrizes de perfil de água para o estilo
Conforme Palmer:
- Cálcio: 50–150 ppm
- Magnésio: 0–30 ppm
- Cloreto: 0–100 ppm
- Sulfato: 100–400 ppm
- Relação Sulfato:Cloreto: 2,5 a 4
- Alcalinidade residual: -30 a +30 ppm
Ajuste da água de superfície
Objetivo: manter a intensidade de lúpulo sem excesso de minerais.
- Sulfato: 200 ppm
- Cloreto: 75 ppm → Razão: 2,7
- Magnésio: 12 ppm para evitar excesso de cálcio
- Cálcio: 103 ppm
Adições por 35,5 L de água:
- 9,3 g de sulfato de cálcio (CaSO₄)
- 13,5 g de sulfato de magnésio (MgSO₄)
- 13,5 g de cloreto de cálcio (CaCl₂)
Resultado técnico:
- pH estimado: ~5,4
- Se necessário, ajuste com bicarbonato de sódio:
- 2,5 g → aumenta alcalinidade residual para -30 ppm
- Sódio resultante: 24 ppm
- 2,5 g → aumenta alcalinidade residual para -30 ppm
Ajuste da água de poço
Água com elevada alcalinidade exige maior atenção.
Adições por 35,5 L:
- 7,1 g de CaSO₄
- 8 g de MgSO₄
- 3,4 g de CaCl₂
Resultados:
- Cálcio = 116 ppm
- Magnésio = 29 ppm
- Alcalinidade residual = 31 ppm
Acidificação necessária: 1,3 mL de ácido lático (80%) para pH 5,6
American IPA | S (início) | S (final) | P (início) | P (final) |
Ca2+ | 6 ppm | 103 ppm | 35 ppm | 116 ppm |
Mg2+ | 2 ppm | 12 ppm | 7 ppm | 29 ppm |
Na+ | 5 ppm | 24 ppm | 13 ppm | 13 ppm |
Cl– | 12 ppm | 75 ppm | 15 ppm | 76 ppm |
SO42- | 15 ppm | 200 ppm | 0 ppm | 200 ppm |
HCO3– | 10 ppm | – | 160 ppm | – |
Alcalinidade | 8 ppm | – | 131 ppm | – |
RA | 3 | -30 | 102 | 31 |
Acidificação? | Não | Sim | ||
Adições | 2,5 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3) 3,5 g de cloreto de cálcio (CaCl2)9,3 g de sulfato de cálcio (CaSO4)3,5 g de sulfato de magnésio (MgSO4) | 3,4 g de cloreto de cálcio (CaCl2) 7,1 g de sulfato de cálcio (CaSO4)8 g de sulfato de magnésio (MgSO4) | ||
Volume | 35,5 L de água |
Estudo de Caso 3: Irish Stout
Características do estilo
Estilo preto com sabor torrado pronunciado. Pode variar de levemente maltada até extremamente seca e amarga. O perfil sensorial remete a café e chocolate, com ou sem cremosidade, dependendo do método de serviço.
Receita
- 3 kg de malte Pale
- 650 g de cevada em flocos
- 320 g de cevada torrada
- 33,5 L de água de mostura, fervura com 31 L
- Lote final: 21 L
Parâmetros ideais para o estilo (Palmer)
- Cálcio: 50–75 ppm
- Magnésio: 0–30 ppm
- Cloreto e sulfato: 50–150 ppm cada
- Relação: ~1:1
- Alcalinidade residual: 60–120 ppm
- Águas alcalinas são desejáveis
Ajuste com água superficial
Desafio: baixa alcalinidade pode levar a pH abaixo do ideal com maltes escuros.
Evitar uso de carbonato de cálcio: difícil solubilização.
Solução:
- Usar bicarbonato de sódio para elevar a alcalinidade
- Evitar práticas como adicionar sais sobre a cama de grãos — não há eficácia comprovada
Composição final da água (para 33,5 L):
- 3,6 g de CaSO₄
- 4,3 g de CaCl₂
- 3,4 g de bicarbonato de sódio
Resultados:
- Alcalinidade = 82 ppm
- Cálcio = 66 ppm
- Sódio = 33 ppm
- Sulfato e cloreto = 75 ppm cada
Ajuste com água de poço
Vantagem: alcalinidade já elevada, ideal para maltes torrados.
Desafio: ausência de sulfato → necessário adicionar.
Adições (para 33,5 L):
- 2 g de CaSO₄
- 3,2 g de CaCl₂
- 2,3 g de MgSO₄
Resultados:
- Cálcio = 75 ppm
- Magnésio = 14 ppm
- Sulfato e cloreto = 60 ppm cada
- Alcalinidade residual = 69 ppm
Atenção especial:
- Mesmo com água alcalina, medir o pH é essencial.
- Maltes escuros variam muito de cor real em relação ao valor estimado nas calculadoras (como Brewfather).
Ideal: solicitar ao fornecedor o EBC real dos maltes.
Irish Stout | S (início) | S (final) | P (início) | P (final) |
Ca2+ | 6 ppm | 66 ppm | 35 ppm | 75 ppm |
Mg2+ | 2 ppm | 2 ppm | 7 ppm | 14 ppm |
Na+ | 5 ppm | 33 ppm | 13 ppm | 13 ppm |
Cl– | 12 ppm | 75 ppm | 15 ppm | 60 ppm |
SO42- | 15 ppm | 75 ppm | 0 ppm | 60 ppm |
HCO3– | 10 ppm | – | 160 ppm | – |
Alcalinidade | 8 ppm | – | 131 ppm | – |
RA | 3 | 19 | 102 | 69 |
Acidificação? | Não | Sim | ||
Adições | 3,4 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3) 4,3 g de cloreto de cálcio (CaCl2)3,6 g de sulfato de cálcio (CaSO4) | 3,2 g de cloreto de cálcio (CaCl2) 2 g de sulfato de cálcio (CaSO4)2,3 g de sulfato de magnésio (MgSO4) | ||
Volume | 33,5 L de água |
Conclusão: ajuste de a água é estratégia e prática
O ajuste do perfil de água é uma das ferramentas mais poderosas para a construção do perfil sensorial e técnico de uma cerveja. Como visto nos três exemplos — Cream Ale, American IPA e Irish Stout —, diferentes fontes de água e objetivos de estilo exigem estratégias distintas:
- Águas pouco mineralizadas exigem complementação precisa de sais e atenção com o pH.
- Águas de poço podem facilitar receitas escuras, mas exigem controle de minerais específicos.
- Não há atalhos: medição de pH durante a mostura é obrigatória.
- O uso consciente de sais (com “nome e sobrenome”) evita desequilíbrios técnicos.
- Ferramentas como o Brewfather são úteis, mas não substituem a medição real com pH-metros calibrados.
E por fim, o ajuste de água é tanto uma ciência quanto uma arte. Exige testes, paciência, observação e curiosidade. Como resumiu Gabriela , o mantra que deve ficar após essa série é simples e direto:
“Meça o pH da mostura.”
Leituras recomendadas
- Água (Palmer & Kaminski) – Editora Krater
- How to Brew (John Palmer) – Edição em português ampliada
- Ciência da Cerveja (Luís Torre) – Tradução e edição por Gabriela Lando
- Química da Cerveja (Alfredo A. Muxel) – Professor da UFSC
Essas obras são ótimos pontos de partida (e aprofundamento) para quem deseja entender melhor como a água influencia — e pode transformar — a cerveja que você produz!