#289 – A Hora Ácida: infusão de sementes e folhas em cervejas ácidas

#289 - A Hora Ácida: infusão de sementes e folha em cervejas ácidas

Infusão de sementes e folhas em cervejas ácidas: técnicas, riscos e possibilidades

Cervejas ácidas complexas e o papel das infusões artesanais

Cervejas ácidas complexas representam um dos campos mais criativos da cerveja artesanal. Neste episódio do Brassagem Forte, dando continuidade à série A Hora Ácida, Henrique Boaventura e Diego Simão, cervejeiro da Cozalinda, discutem técnica e sensorial no uso de infusões de sementes e folhas — um recurso que amplia o perfil aromático das cervejas sem mascarar sua base.

Uma conversa imperdível, de altíssimo nível, ampliando os horizontes possíveis do fazer cervejeiro, e que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

Infusão em cerveja: o que é e como funciona

Infusão, no contexto cervejeiro, é a adição de ingredientes brutos — como folhas secas ou sementes aromáticas — à cerveja já fermentada. De modo que se difere de adições em fervura ou maturação precoce. O objetivo é extrair compostos sensoriais delicados sem comprometer o perfil da cerveja ácida ou selvagem.

Quando e como aplicar a infusão: timing é tudo

O processo de infusão deve ocorrer após a fermentação primária. Ingredientes como folhas de chá, sementes e especiarias devem ser adicionados na fase de maturação, com a cerveja já estabilizada. Isso reduz o risco de contaminações e evita que microrganismos alterem o perfil desejado.

Folhas e sementes podem conter microrganismos indesejados. Mesmo em cervejas selvagens, é necessário cuidado para que a adição não introduza contaminações ou sabores agressivos como adstringência e taninos. O segredo está em conhecer o ingrediente e testar sua interação com a base.

Base sólida, infusão segura: conheça sua cerveja antes de adicionar

Diego enfatiza: “Não adianta infundir se a base não é sólida.” Cada cerveja ácida tem um perfil único. Na Cozalinda, por exemplo, a Praia do Meio tem acidez cítrica leve — ideal para infusões como hortelã ou capim-limão. Já a Pedras de Itaguaçu, com perfil funky, permite ousadias mais complexas. A chave é respeitar o equilíbrio.

Gastronomia como guia: ingredientes que funcionam

Insumos culinários são uma ótima referência para cervejas infusionadas. Amburana, cumaru, chá preto defumado, hortelã e erva-doce são ingredientes que já demonstraram bons resultados. A recomendação é testar primeiro em pratos ou infusões caseiras antes de aplicar na brassagem.

A técnica da infusão a frio

A infusão a frio, diretamente na cerveja, é o método preferido por Diego. A temperatura ambiente favorece a extração gradual. O tempo de contato varia conforme o ingrediente — a semente de amburana, por exemplo, exige menos de uma semana para evitar excesso de taninos. Tudo é empírico: testar e acompanhar são partes essenciais do processo! ✅

Planejamento e blends: erros acontecem, corrija no corte

Mesmo com planejamento, é fácil errar na dosagem. Por isso, o segredo está em sempre produzir mais cerveja do que o necessário. Isso permite fazer blends, combinando diferentes lotes para ajustar corpo, acidez, intensidade e reduzir defeitos sensoriais.

Tinturas alcoólicas: solução temporária ou risco no longo prazo?

Tinturas podem ser úteis para testes, mas não substituem a infusão direta em cervejas com envelhecimento longo. ❌

Isso porque elas tendem a perder intensidade sensorial com o tempo. O ideal, portanto, é usar a tintura apenas como estudo de viabilidade antes de aplicar o insumo real.

Mixologia, contraste e criatividade: onde buscar combinações novas

A mixologia — o estudo e arte de fazer drinques — desbrava muitos insumos aplicados a coquetéis, através de técnicas diversas. Isso inspira, também para a produção cervejeira, combinações “inusitadas”, como laranja e balsâmico, hortelã e abacaxi, ou canela com frutas amarelas.

O segredo, como também se faz na mixologia, é pensar como na culinária: identificar o perfil dominante da cerveja e trabalhar complementos ou contrastes que criem novas camadas de sabor.

Afinal, cerveja também é gastronomia!

Cuidado no envase: refermentação controlada é fundamental

Na etapa de envase, as cervejas ácidas e selvagens exigem atenção por conta da refermentação. O uso de leveduras neutras, propagadas previamente, evita que microrganismos remanescentes alterem o resultado final. O controle microbiológico na garrafa garante estabilidade sensorial no longo prazo.

Conclusão: arte, paciência e precisão técnica

Infusões em cervejas ácidas complexas não seguem fórmulas prontas. Elas exigem domínio técnico, paciência para testes e sensibilidade para equilíbrio sensorial. A experiência da Cozalinda mostra que, quando bem executadas, essas infusões de folhas e sementes podem transformar cervejas em obras únicas, conectando a produção à gastronomia e ao terroir brasileiro.

Arrisque-se, teste e se surpreenda!

#288 – Brassando com Estilo: English Barleywine

Brassando com Estillo - Barley Wine

A English Barleywine não é vinho, não é chope de vinho e certamente não é para os fracos de coração. Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura recebe Beto Tempel, cervejeiro e fundador da Cervejaria Trilha, para um mergulho profundo no estilo English Barleywine — desde suas origens históricas até técnicas modernas de produção. O resultado? Um verdadeiro tratado técnico sobre um dos estilos mais nobres e complexos da escola inglesa.

Não perca mais esse papo de altíssimo nível, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

Origem e evolução do estilo

Beto e Henrique iniciam contextualizando a English Barleywine como herdeira direta das tradicionais Burton Ales. Essas cervejas inglesas do século XIX eram potentes, envelhecidas e muito alcoólicas, o que as aproximava do status de “vinho de cevada”. A denominação “Barleywine” surgiu por volta de 1872, e, ao longo do século XX, o estilo foi se consolidando com menos densidade, mas mantendo o caráter robusto.

Com o tempo, a Barleywine passou a ser confundida com outras Strong Ales, como as Old Ales, e o BJCP decidiu separá-las com base principalmente no envelhecimento e características sensoriais derivadas.

Perfil sensorial segundo o BJCP (17D)

Aroma

  • Maltado, rico e com notas de caramelo (em versões escuras) e toffee (nas claras).
  • Frutado moderado a forte, com notas de frutas secas e escuras.
  • Lúpulo floral, terroso ou de marmelada, de baixo a assertivo.
  • Álcool perceptível, suave, nunca agressivo.

Aparência

  • De âmbar dourado a marrom escuro, nunca preta.
  • Colarinho quase branco, baixo a moderado, com baixa retenção.
  • Pode apresentar “lágrimas” pela viscosidade.

Sabor

  • Dulçor médio a alto, com complexidade de malte (pão, biscoito, frutas secas).
  • Amargor entre 35 e 70 IBU, equilibrando o dulçor.
  • Final de médio-seco a médio-doce, com possível presença de notas vínicas ou oxidativas com o envelhecimento.

Sensação na boca

  • Corpo alto, textura aveludada e aquecimento alcoólico suave.
  • Carbonatação baixa a moderada.

Produção: filosofia, malteação e envelhecimento

Beto é enfático: Barleywine deve ser complexa. Ele opta por grists variados, sempre incluindo maltes caramelos (25, 50, 75 e até 400), maltes aromáticos, como biscuit, e castanhos, e o indispensável malte Melanoidina — essencial para criar precursores de envelhecimento como o furfural.

Envelhecimento

Na Trilha, nenhuma Barleywine é lançada jovem. O período de guarda varia entre 10 a 24 meses. Para Beto, o tempo é o grande diferencial que confere profundidade e sofisticação ao estilo.

A escolha dos lúpulos: foco no amargor, não no aroma

O lúpulo, para Beto, serve como contraponto ao dulçor. Ele privilegia lúpulos ingleses clássicos como East Kent Goldings e Fuggles, sempre em adições iniciais para amargor. Um cuidado técnico relevante é evitar variedades com altos níveis de beta-ácidos, que se preservam com o tempo e podem gerar sabores indesejáveis.

Levedura e fermentação

Levedura

A única levedura que Beto utiliza para suas English Barleywines é a S-04, pela boa esterificação e performance em envelhecimento. Ele destaca a importância do pitch rate elevado (1.2 a 1.5 milhões de células/ml/°P) para garantir uma fermentação saudável.

Fermentação

  • Temperatura de fermentação: 18 °C para reduzir álcoois superiores.
  • Fermentação sob leve pressão (~0,5 bar) com válvula de alívio.
  • Oxigenação: 3 L/min durante o pitching, visando uma longa fase de adaptação.

Tratamento da água

O perfil de água usado na Trilha para Barleywines privilegia o maltado:

  • Cálcio: ~100 ppm
  • Magnésio: ~10–12 ppm
  • Sódio: ~80 ppm (levanta dulçor, sem salgar)
  • Cloreto: ~240–250 ppm
  • Sulfato: metade do cloreto (relação 2:1)

Mosturação e fervura

Temperaturas

  • Beta-glucanase: 3 min a 45 °C (melhor filtração)
  • Sacarificação:
    • 45 min a 68 °C
    • 20 min a 72 °C
  • Mash-out e fervura de 90 a 120 minutos

Objetivo

Preservar dextrinas e alcançar um mosto com até 31°P (OG: 1.134), resultando em cervejas com FG em torno de 1.044 (11°P) e teor alcoólico elevado, mas equilibrado com amargor.

Receita base: Barleywine “Bunker” da Trilha

Grain bill
  • 59% Pale Ale
  • 6% Caramel Aromatic
  • 10% Melanoidina
  • 1% Cristal 400
  • 11% Cristal 25
  • 11% Cristal 50
  • Aromáticos (biscuit, barley loaf) em quantidades variáveis
Lúpulo
  • East Kent Goldings (~40 IBUs)
Fermentação
  • Levedura S-04
  • Pitching rate: 1.2–1.5 mi células/ml/°P
  • Temperatura: 18 °C
  • Fermentação sob leve pressão
Água
  • Perfil maltado (cloreto > sulfato)
Densidades
  • OG: 1.134
  • FG: ~1.044
  • ABV estimado: 11–12%

Experimentações e inovação com enzimas

Nos últimos anos, Beto vem testando receitas com apenas 20% de malte base, complementando a conversão enzimática com enzimas exógenas. Isso permitiu usar grandes quantidades de maltes especiais e cristal sem comprometer a fermentação — uma abordagem ousada que desafia os limites do estilo, mas com resultados sensoriais incríveis.

Conclusão

English Barleywine é, nas palavras de Beto, “talvez o estilo mais complexo que temos fora do universo das cervejas ácidas”. Produzi-la exige técnica, paciência, bom senso e uma pitada de ousadia. Entre escolas clássicas e novas possibilidades, o que se mantém é a busca pela profundidade de sabor, elegância no envelhecimento e respeito pelo tempo.

Para quem quiser mergulhar ainda mais nesse universo, a Trilha oferece cursos especializados em produção de cervejas extremas — uma extensão natural de quem vive e respira inovação com os pés firmes na tradição.

#287 – LODO: cerveja com baixo teor de oxigênio dissolvido

LODO

LODO na cerveja: técnicas para lagers claras com mais frescor e estabilidade

Você sabe o que é LODO na cerveja? A sigla vem do inglês Low Dissolved Oxygen — ou baixo oxigênio dissolvido — e se refere a um conjunto de práticas que visam reduzir ao máximo o contato da cerveja com oxigênio durante o processo de produção.

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura conversa com o mestre cervejeiro Marcus Dapper sobre como aplicar essas técnicas para melhorar o frescor, estabilidade sensorial e shelf life das cervejas lager claras.

Não perca esse papo incrível, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

Origem e filosofia do LODO na cerveja

Muito antes de existirem oxímetros precisos, cervejarias alemãs já aplicavam práticas que limitavam o oxigênio dissolvido no processo de produção. Mesmo sem saber, adotavam procedimentos que hoje são a base do LODO.

A Lei da Pureza Cervejeira alemã (Reinheitsgebot), apesar de limitar os ingredientes, impulsionou o desenvolvimento técnico. Isso criou uma cultura de precisão que hoje influencia desde equipamentos até as boas práticas de fabricação no mundo todo.

LODO serve para todos os estilos?

Segundo Dapper, LODO só faz sentido em lagers claras e com até 5% de teor alcoólico, como Helles, German Pils, Oktoberfest ou Vienna Lager. Estilos mais escuros ou com maior carga de maltes especiais têm outras características sensoriais nas quais o oxigênio exerce menor influência.

Técnicas LODO: como aplicar na sua cerveja

A prática do LODO é uma soma de pequenas ações que, juntas, garantem uma cerveja mais estável e fresca. Não se trata de adotar uma técnica isolada, mas sim um processo integrado:

  • Ferver a água de mostura previamente para expulsar oxigênio;
  • Moer o malte imediatamente antes do uso;
  • Evitar agitação excessiva na mostura;
  • Reduzir a carga térmica na fervura;
  • Resfriamento e envase sem contato com o ar;
  • Utilizar levedura saudável ou maior pitch para evitar oxigenação do mosto frio.

O impacto do oxigênio na parte quente do processo

A parte quente da produção (mostura e fervura) é crítica na formação de precursores da oxidação, como o trans-2-nonenal (notas de papelão). Assim, o controle de oxigênio e de temperatura da fervura são essenciais para minimizar a liberação de compostos que afetam o shelf life da cerveja.

Medição de oxigênio: limite técnico para o caseiro

Na parte fria, grandes cervejarias já conseguem controlar níveis de oxigênio na faixa de 2 a 8 ppb, graças a equipamentos de alta precisão. Para o cervejeiro caseiro ou artesanal, a medição da parte quente ainda é inviável, mas adotar práticas como menor tempo de fervura com maior eficiência térmica já ajuda a evitar a formação de precursores.

Fervura, DMS e desempenho enzimático

  • Para eliminar DMS, 20–25 minutos de fervura vigorosa são suficientes.
  • A coagulação proteica e isomerização do lúpulo exigem fervuras mais longas (40–45 min).
  • A agitação controlada da mostura acelera reações enzimáticas e pode permitir tempos mais curtos sem comprometer a conversão do amido.

Fermentação e oxigênio: mito ou necessidade?

É possível fermentar com mínima oxigenação do mosto, principalmente usando leveduras secas bem manejadas ou fazendo um pitch maior. A velocidade com que a levedura consome oxigênio na parte fria é alta o suficiente para minimizar riscos de oxidação sensorial.

O que vale a pena fazer no modo caseiro?

Para quem faz cerveja em casa, Dapper recomenda:

✅ Focar na qualidade da fervura;
✅ Reduzir a carga térmica;
✅ Usar malte fresco;
✅ Minimizar a exposição ao ar na fermentação e envase;
❌ Evitar exageros como moagem com CO₂ ou inertização de panela na mostura.

Conclusão: LODO faz sentido?

Sim! Para Marcus Dapper, com décadas de experiência em grandes cervejarias, LODO é uma abordagem técnica legítima e eficaz para produzir cervejas lager com frescor e estabilidade sensorial superiores. Mas é preciso aplicá-lo com equilíbrio e conhecimento — e não como uma obsessão por eliminar cada ppm de oxigênio.

“Fazer cerveja excelente é uma soma de detalhes. E LODO é o detalhe que faz a diferença na lager clara”, diz Dapper.

#286 – Cerveja dentro do orçamento

Cerveja dentro do orçamento

Como fazer cerveja caseira de baixo custo: técnicas, insumos e equipamentos

Fazer cerveja em casa pode parecer um luxo, mas, como diria Leandro Oliveira: “não fazer cerveja é muito caro”.

Neste episódio do Brassagem Forte, Leandro, do canal Cerveja Fácil, e Henrique Boaventura mostram que é possível produzir cerveja artesanal de qualidade sem gastar demais.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, aprenda técnicas, dicas e receitas para turbinar sua produção caseira — com o orçamento sob controle.

O mito da cerveja caseira barata

Durante anos, ouviu-se que fazer cerveja em casa era mais barato do que comprar. E é — se você souber como. Embora existam custos implícitos como gás, água, energia e tempo, o grande segredo está em como planejar, otimizar insumos e evitar armadilhas.

O que encarece a produção caseira?

Investir em equipamentos sofisticados logo de cara pode transformar seu hobby em um ralo de dinheiro. Muitos iniciantes acreditam que a qualidade está no inox, quando, na verdade, ela está no controle dos processos.

Equipamentos Essenciais para Fazer Cerveja Gastando Pouco

Segundo Leandro, o setup básico para fazer cerveja de baixo custo inclui:

  • Geladeira com controlador de temperatura
  • Panela com cesto ou BIAB
  • Fermentador (bombona ou balde)
  • Barril e cilindro de CO₂
  • Fogão ou fogareiro
  • Densímetro

Com isso, você já consegue fazer cervejas incríveis — sem gastar uma fortuna.

Leveduras e lúpulos: como criar receitas de cerveja caseira mais baratas

Evite complexidade desnecessária! Foque em receitas com menos insumos, controle de temperatura e reaproveitamento de levedura. Um único pacote pode render cinco ou mais levas, economizando até R$20 por receita.

No quesito lúpulo, troque o hype por eficiência. Economize sem perder os aromas desejados. Então use:

  • Magnum para amargor
  • Whirlpool e dry hopping para extração aromática
  • Lúpulo brasileiro fresco, que pode render 30% mais aroma com menos quantidade

O valor dos adjuntos na redução de custos

Milho em flocos é um aliado poderoso! Ele reduz custo e mantém o corpo, quando combinado com maltes especiais e rampas altas de mostura (70–72 °C). Com conhecimento técnico, é possível utilisar até 70% de adjuntos e fazer cervejas saborosas, com excelente drinkability.

Estilos ideais para produção econômica

  • Ordinary Bitter (até R$1,89/litro)
  • Helles com milho
  • Vienna Lager contemporânea
  • Session IPAs
  • Pale Ales com dry hopping moderado

Cervejas com teor alcoólico reduzido também consomem menos insumo — e entregam muito.

Dicas de ouro para comprar insumos mais baratos

  • Compre em grupo e divida o frete
  • Faça parcerias com cervejarias locais
  • Aproveite insumos descartados, como lama de levedura
  • Evite compras fracionadas — compre por saco, sempre que possível

Conclusão: planejamento é o segredo da boa e barata cerveja caseira

Produzir cerveja de baixo custo não é sinônimo de cerveja ruim. Com técnica, planejamento e escolhas inteligentes, é possível criar cervejas frescas, aromáticas e complexas por menos de R$3 o litro. E mais do que isso: é libertador poder dizer que “não fazer cerveja é que sai caro”.

#285 – A Hora Ácida: Lachancea thermotolerans brasileira

A Hora Ácida #285

Lachancea thermotolerans brasileira: a levedura selvagem que transforma a produção de cervejas ácida. Uma linhagem coletada na floresta amazônica promete inovação, controle de acidez e identidade brasileira para cervejarias artesanais.

Não perca mais este papo no Brassagem Forte, com a participação de Isabel Sabino e Diego Simão, e a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

De pesquisadora a cervejeira: quem é Isabel Sabino

A bióloga Isabel Sabino iniciou sua trajetória com fungos da Antártida e, durante o doutorado, migrou para o estudo de leveduras. Sua experiência em microbiologia encontrou a prática na Cervejaria Verace, onde iniciou pesquisas sobre fermentação ácida com Lachancea thermotolerans. O foco era buscar uma levedura brasileira capaz de acidificar o mosto durante a fermentação, sem o uso de bactérias.

Por que a coleta de leveduras selvagens é importante

Coletar leveduras da natureza permite explorar o potencial biotecnológico de micro-organismos adaptados a ambientes específicos. A biodiversidade do Brasil oferece oportunidades únicas: espécies pouco estudadas podem revelar soluções para a produção de alimentos, bebidas e outros insumos industriais. A Lachancea thermotolerans foi isolada a partir da casca de uma árvore, revelando-se promissora para a produção de cervejas ácidas.

Como a Lachancea thermotolerans foi coletada na floresta amazônica

A coleta ocorreu em 2016, com apoio do Museu Emílio Goeldi. Casca de árvore foi colocada em meio líquido contendo rafinose e etanol, para selecionar leveduras menos comuns e tolerantes. A amostra foi processada rapidamente e armazenada no banco de microrganismos da UFMG, que hoje contém mais de 50 mil isolados. A linhagem brasileira da Lachancea thermotolerans foi obtida dessa coleta.

Da placa de Petri ao laboratório: desenvolvimento da levedura

A linhagem passou por triagens fisiológicas, testes de segurança e fermentações piloto. Ela demonstrou:

  • Atenuação de até 72%
  • Produção de 6 g/L de ácido lático
  • Alta floculação
  • Tolerância ao álcool de até 6%
  • Redução de pH para 3,8 em 24h

Produz também ácidos cítrico, málico, succínico e acético, conferindo uma acidez mais complexa e equilibrada — ideal para cervejas ácidas como Catharina Sour.

Perfil sensorial e potencial para cervejas ácidas

Durante os testes, a Lachancea thermotolerans brasileira apresentou:

  • Aromas florais (2-feniletanol), frutas brancas e mel
  • Acidez perceptível, porém suave
  • Sabor com equilíbrio entre dulçor residual e acidez
  • Potencial para fermentações com frutas brasileiras

O perfil sensorial foi descrito como próximo ao de um vinho branco, com notas de pera, uva verde e rosas.

Parâmetros técnicos da fermentação com a Lachancea brasileira

  • Temperatura ideal: 22 °C
  • Mosto: malte pilsen e caramelo, 8 IBU
  • Carbonatação: na garrafa
  • Tempo de acidificação: 24h para pH ~3,8
  • Atenuação: até 72%
  • Consumo parcial de maltose e maltotriose
  • Tolerância ao álcool: até 6%
  • Floculação: alta

A levedura ainda não teve sua tolerância a altos níveis de lúpulo totalmente estabelecida, mas os testes indicam bom desempenho até 10 IBU.

Aplicações práticas e recomendações para uso

Ideal para cervejarias que buscam praticidade, controle microbiológico e inovação, essa levedura permite a produção de cervejas ácidas sem uso de bactérias. Recomenda-se:

  • Mosturação que favoreça açúcares simples
  • Fermentação isolada, sem cofermentação inicial
  • Testes sensoriais antes da adição de frutas ou adjuntos

É uma excelente alternativa para Catharina Sour e outros estilos frutados, entregando equilíbrio e complexidade sem complicações no processo.

Comercialização e o futuro das leveduras nacionais

A Lachancea thermotolerans brasileira será comercializada pelo Laboratório da Cerveja, em parceria com a UFMG, após finalização do licenciamento. A expectativa é que cervejeiros caseiros e profissionais tenham acesso a um produto nacional com alto potencial biotecnológico.

Isabel Sabino também aponta o desejo de aplicar a levedura em outras bebidas fermentadas como sidras, espumantes e vinhos com frutas brasileiras, além de continuar explorando linhagens nativas com características únicas.

Conclusão

A Lachancea thermotolerans brasileira simboliza o encontro entre ciência, biodiversidade e inovação cervejeira. Com sua capacidade de acidificar, fermentar e entregar complexidade sensorial, ela oferece uma alternativa segura, prática e com identidade nacional.

Mais do que uma nova levedura, trata-se de uma nova etapa para a biotecnologia cervejeira brasileira — capaz de impulsionar tanto pequenos produtores quanto a indústria nacional rumo a sabores únicos, sustentáveis e autênticos.

#284 – Nacional das Acervas 2025 e associativismo

Nacional das Acervas

Concurso Nacional das Acervas 2025: resultados, tendências e inclusão na cerveja caseira

O Concurso Nacional das Acervas 2025 foi mais que uma competição: foi um grande encontro de cervejeiros e cervejeiras caseiras de todo o Brasil. Organizado pela Acerva Paulista e promovido em São Paulo durante o feriado de Corpus Christi, o evento reuniu 600 amostras de cerveja e contou com diversas atividades técnicas, culturais e sociais.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, aqui reunimos os principais pontos discutidos no episódio 284 do Brassagem Forte, com Henrique Boaventura, Ludmyla Almeida e Oscar Freitas Júnior, presidente da Acerva Brasil.

O que é o Nacional das Acervas?

Mais que um concurso, um ecossistema cervejeiro

O evento é o maior encontro técnico e cultural entre as acervas estaduais. Vai muito além da competição: inclui congressos técnicos, passeios, Beer Bus, brassagens coletivas e experiências com foco em comunidade.

Números da edição 2025

  • 600 amostras inscritas (limite máximo)
  • Mais de 2.300 garrafas analisadas
  • Evento sediado na Academia da Cerveja, em São Paulo
  • Participação de todas as regiões do Brasil

Acervas com maior participação:

  • Paulista: 250
  • Paranaense: 121
  • Gaúcha: 55
  • Catarinense: 49
  • Mineira: 41

As melhores cervejas do Brasil em 2025

Top 3 geral:
  1. New Zealand Pilsner (ouro)
  2. Belgian IPA (prata)
  3. German Pils (bronze)

O resultado mostra um amadurecimento do perfil técnico das produções caseiras e uma tendência de retorno aos estilos clássicos, leves e bem executados.

Desempenho por aproveitamento de medalhas
  • Cearense: 25%
  • Paranaense: 20%
  • Catarinense: 18%
  • Paulista: 14%

Tendência: menos IPA, mais sutileza

Participantes e jurados observaram uma queda na presença de IPAs e um aumento no envio de estilos como Belgian Single, German Pils e outros mais delicados. A cena cervejeira caseira parece mais madura e interessada em qualidade e equilíbrio.

O associativismo em alta

A Acerva Brasil e suas representantes regionais estão se reinventando. Com foco em inclusão de não-produtores, incentivo a encontros presenciais e ações para ampliar a diversidade, o associativismo cervejeiro ressurge como peça-chave para manter vivo o hobby.

Inclusão e representatividade: desafios e caminhos

O evento de 2025 trouxe importantes discussões sobre inclusão. Algumas medidas destacadas:

  • Paridade de gênero nas mesas de jurados
  • Acessibilidade em todos os eventos
  • Ideias para descontos em inscrições para mulheres e pessoas negras
  • Ações afirmativas como workshops em bairros periféricos

Reativando a cultura do encontro

A pandemia interrompeu encontros presenciais e esvaziou parte do movimento associativo. Para retomar, é preciso incentivo coletivo e apoio dos bares e cervejarias. O exemplo de Acervas que estão promovendo encontros abertos mostra que é possível reacender a chama do coletivo.

Conclusão: cerveja se faz junto

O Nacional das Acervas 2025 foi mais do que números. Foi uma reafirmação do prazer em fazer, beber e compartilhar cerveja. Representou a maturidade técnica de quem brassou, a evolução do associativismo e o potencial transformador da inclusão no universo cervejeiro. Se o futuro da cerveja caseira for coletivo, técnico e diverso, ele será mais forte – e mais saboroso.

#283 – Brassando com Estilo: American Porter

American Porter

Como fazer uma American Porter: história, receita e guia completo do estilo

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura recebeu Ingrid Matos para mergulhar na história e nos detalhes técnicos da American Porter, um estilo de cerveja escura que une a tradição britânica e a ousadia do lúpulo americano.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, você vai descobrir como fazer uma American Porter de forma precisa, com todos os detalhes discutidos por capacitadíssimos especialistas!

História da American Porter: Origens e Renascimento

A gênese e os blends históricos

A Porter nasceu na Inglaterra do século XVIII como a cerveja do trabalhador, popularizada pelos blends em pubs. Misturas de Mild Ale, Old Ale e Pale Ale criaram perfis únicos que chegaram até nós, mesmo que a gênese exata do estilo permaneça incerta.

O renascimento do estilo em versão americana

Em 1984, o renascimento da Porter na Inglaterra inspirou o surgimento das American Porters, marcadas por aroma e amargor de lúpulo em contraste com maltes torrados. Exemplos clássicos incluem Anchor Porter, Bells Porter e Deschutes Black Butte.

A American Porter segundo o BJCP

Impressão geral e perfil sensorial

  • Cerveja escura, maltada, com amargor médio a alto.
  • Aroma de chocolate, café leve, notas de caramelo ou toffee e presença opcional de ésteres frutados.
  • Aparência marrom escuro a preto, reflexos rubi, colarinho castanho.
  • Sabor equilibrado entre malte torrado e amargor, com final seco ou meio doce.

Parâmetros técnicos

  • OG: 1.050 a 1.070
  • FG: 1.012 a 1.018
  • Amargor: 25 a 50 IBU
  • Cor: 22 a 40 SRM
  • ABV: 4,8% a 6,5%

Maltes e construção do corpo

Maltes base, especiais e torrados

A base da receita inclui:

  • Malte Pilsen Agrária (88-89%)
  • Melanoidin (4-6%) para dulçor e cor rubi
  • Carafa 3 Special (~3%) para cor intensa e café
  • Malte Chocolate ou Carafa 2/Kestel para notas de chocolate.

Maltes caramelo até 10% podem ser usados para dulçor e frutas escuras, mas sem exageros para manter o equilíbrio.

Lúpulos na American Porter: contraste e equilíbrio

Escolha e adições de lúpulo

  • Lúpulos clássicos: Northern Brewer, Cascade, Goldings.
  • Ingrid recomenda Amarillo para notas de laranja que combinam com chocolate dos maltes.
  • Evite lúpulos muito intensos como Nelson Sauvin para não desequilibrar.
  • Amargor no início da fervura e aroma no whirlpool, sem exageros no dry hopping.

Fermentação e levedura para American Porter

Levedura ideal e perfil de fermentação

  • London Ale (Levitec) como levedura preferida por Ingrid: esterificação rica em frutas vermelhas.

Fermentação entre 18-20°C, garantindo complexidade sensorial e equilíbrio.

Ajustes de água e carbonatação

Perfil de água recomendado

  • Água levemente dura (50-100 ppm de cálcio) para ressaltar o malte.

Para quem não controla pH, adição dos maltes torrados no final da mostura ajuda a manter o equilíbrio.

Carbonatação no estilo

Carbonatação média a média-alta (2,5-2,7 volumes) para realçar aromas e manter o perfil clássico da American Porter.

Receita completa de American Porter

Ingredientes

  • Malte Pilsen Agrária (88-89%)
  • Melanoidin (~4-6%)
  • Carafa 3 Special (~3%)
  • Malte Chocolate ou Carafa 2/Kestel
  • Lúpulo amargor: Columbus, Magnum ou Galena
  • Lúpulo aroma: Amarillo no whirlpool (1 g/L)
  • Levedura: London Ale (Levitec), 18-20 °C
  • OG: 1.065-1.068 | FG: 1.008-1.010
  • IBU: 38-40 | ABV: 6-6,5%

Conclusão

A American Porter é um estilo que equilibra tradição e inovação, destacando-se pelo contraste entre malte torrado e lúpulo americano. Produzir essa cerveja exige atenção aos detalhes, honestidade com o estilo e paixão pela cerveja artesanal. Consuma, valorize e compartilhe — assim mantemos viva a cultura cervejeira!

#282 – Produzindo uma Hazy IPA sem álcool

Hazy IPA sem álcool

A produção de cervejas sem álcool tem ganhado cada vez mais espaço entre os cervejeiros caseiros e profissionais. A combinação entre técnica apurada, inovação sensorial e inclusão de novos perfis de consumidores transformou esse nicho em um dos mais promissores da cerveja artesanal.

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura conversa com Tedesko Almeida, da Cervejaria Piwo (ES), sobre os desafios e soluções para criar uma Hazy IPA sem álcool com corpo, sabor e estabilidade — e o melhor: sem precisar de equipamentos industriais.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, acompanhe esse papo imperdível!

Por que produzir uma cerveja sem álcool artesanal?

De promessa caseira a tendência crescente

O primeiro lote da Hazy IPA sem álcool da Piwo nasceu de uma promessa do cervejeiro Tedesko à sua esposa grávida — uma grande apreciadora do estilo. A experiência doméstica foi tão bem-sucedida que se transformou em uma oportunidade de mercado. Em 2024, o setor sem álcool cresceu expressivamente no Brasil, com a Ambev registrando aumento de 20% nas vendas e a Heineken, 9%.

Novos públicos, novas possibilidades

As cervejas sem álcool permitem ampliar o consumo em ocasiões antes restritas, além de agradar quem busca baixo teor calórico, produtos mais saudáveis ou experiências sensoriais sem embriaguez. Tedesko resume bem: “É como reaprender a fazer cerveja”.

Qual estilo de cerveja é melhor para fazer sem álcool?

Hazy IPA: complexidade para compensar a falta de álcool

Estilos com perfil aromático intenso, como Hazy IPA, se mostram ideais para versões sem álcool. A complexidade de lúpulo e corpo permite mascarar a ausência de etanol, sem comprometer a experiência sensorial.

Outras opções promissoras

Estilos escuros e defumados, como Schwarzbier ou Grodziskie, também são boas alternativas. A dica é evitar cervejas extremamente limpas e leves, como as pilsners clássicas, que exigem precisão e equipamentos caros para entregar o mesmo resultado.

Como escolher a levedura certa para cerveja sem álcool?

LA-01 da Fermentis: o coração da fermentação

A Piwo utilizou a levedura LA-01 da Fermentis, que fermenta apenas açúcares simples, como glicose e frutose. Isso possibilita uma fermentação completa com baixa atenuação, sem precisar interromper o processo, o que evita sabores de mosto e garante estabilidade microbiológica.

Pitch e dicas para caseiros

  • Dose usada: cerca de 1g/L (200g para 210 litros)
  • Disponível em pacotes grandes (ainda sem versão fracionada no Brasil)

Como fazer a mosturação ideal para cervejas sem álcool?

Foco na produção de açúcares complexos

  • Temperatura: 74°C
  • pH: 5,4
  • Tempo: 40 minutos

Esse setup favorece a alfa-amilase, reduz a ação da beta-amilase e evita degradação de proteínas importantes para retenção de espuma.

Proporção e grist

  • 85% malte Pilsen
  • 15% aveia em flocos
  • Relação água/malte: ~2,7 L/kg
  • OG: 1.026 | FG: 1.023

A aveia contribui com corpo, cremosidade e espuma. Nas próximas versões, Tedesko pretende aumentar para 20–30%.

Como evitar o gosto de mosto em cervejas sem álcool?

Fermentação completa e uso de lúpulo ajudam

A fermentação completa com leveduras específicas gera compostos que suavizam o gosto de mosto cru. Além disso, a carga aromática dos lúpulos — especialmente extratos com menos matéria vegetal — ajuda a mascarar qualquer off-flavor, como o acetaldeído ou sabores metálicos.

Qual a melhor estratégia de lupulagem para Hazy sem álcool?

Carga balanceada e baixo risco de hop creep

  • Whirlpool: 5 g/L
  • Dry hopping: 8–10 g/L
  • Lúpulos usados: Nelson Sauvin e Riwaka
  • Extrato: Quantum (Hops Company)

A escolha por extratos ou cryo hops reduz a matéria verde e minimiza a atividade enzimática que poderia causar hop creep.

Como controlar o pH para garantir estabilidade e espuma?

Acidificação no final da fervura ou no fermentador

  • Alvo: pH 4.2 a 4.4
  • Agente: ácido lático
  • Momento: pós-fervura ou início da fermentação

Essa acidificação é crucial para evitar contaminações e prolongar a vida útil da cerveja, já que a baixa atividade fermentativa não reduz o pH naturalmente como em cervejas alcoólicas.

Qual perfil de água ideal para Hazy IPA sem álcool?

Foco em corpo e maciez

  • Cloreto: 200 ppm
  • Magnésio: 30–40 ppm
  • Sulfato: ~30 ppm

Essa água promove sensação de corpo, suavidade na boca e favorece os aromas frutados, evitando a secura excessiva que o sulfato em excesso pode causar.

Carbonatação, envase e pasteurização: o que muda?

Carbonatação padrão e envase em lata ou keg

  • Carbonatação: 2.5–2.7 volumes CO₂
  • Envase: não pasteurizado
  • Dica extra: mantenha refrigerada para maior estabilidade

Graças à boa fermentação, lúpulo e pH baixo, a Piwo optou por não pasteurizar, preservando o frescor dos lúpulos — especialmente os do Novo Mundo.

Faça você também!

Criar uma cerveja artesanal sem álcool é um exercício técnico, criativo e altamente gratificante. Com planejamento, é possível entregar uma experiência sensorial completa — com corpo, aroma e estabilidade —, mesmo em pequena escala.

A Hazy IPA sem álcool da Piwo é um exemplo de como a técnica e a curiosidade podem expandir os limites da cerveja artesanal. E como disse o Tedesko: “é uma forma de começar de novo. Reaprender, estudar, acompanhar cada passo — e, no final, ter uma cerveja de verdade nas mãos.”

#281 – Dia de Julgamento: Blonde Ale

Dia de Julgamento - Blonde Ale

Se você quer saber como se avalia uma cerveja artesanal de forma técnica, este conteúdo é para você! Neste episódio especial do Brassagem Forte, Henrique Boaventura e Gabriela Lando, a Química Cervejeira, realizam a primeira edição do Dia do Julgamento, avaliando, segundo os critérios do BJCP, uma Blonde Ale caseira enviada pelo Taylor, membro da Cerva Serra – Cervejeiros da Serra Gaúcha.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, acompanhe a avaliação completa da Blonde Ale, entenda os pontos fortes, os erros, os acertos e, principalmente, descubra como melhorar suas próprias brassagens.

O estilo Blonde Ale

A Blonde Ale é uma cerveja de origem americana, de alta fermentação, leve e com alta drinkabilidade. Seu perfil sensorial é limpo, maltado, com baixo amargor e sutis notas de lúpulo floral, frutado ou herbal. Apresenta corpo médio-baixo, final seco e não deve ter sabores agressivos.

Ideal para quem quer uma cerveja fácil de beber, mas sem abrir mão de equilíbrio e qualidade sensorial.

Ficha Técnica da Produção

  • Estilo: Blonde Ale (BJCP 18A)
  • Malte: 100% Pilsen (Agrária)
  • Lúpulo: Brewers Gold (fresco, colhido no dia)
  • Levedura: Safale US-05 (3ª geração)
  • Água: Água de poço, sem análise prévia
  • Adições de lúpulo:
    • 100g na fervura (60 min.)
    • 100g no whirlpool (flameout)

A cerveja foi produzida no CEAB (Centro Estadual de Diagnóstico e Pesquisa em Alimentos e Bebidas) em Caxias do Sul, utilizando lúpulo fresco cultivado localmente, sem análises laboratoriais sobre alfácidos ou perfil da água.

Análise sensorial completa da Blonde Ale

Aroma

  • Percepções:
    • Malte de baixa intensidade (pão, biscoito, cereal)
    • Leve dulçor (caramelo e mel), sugerindo início de oxidação
    • Lúpulo floral e frutado (pêssego, maçã) em baixa intensidade
    • Esterificação perceptível, gerando notas de frutas amarelas e cítricas
  • Problemas: Aroma não completamente limpo, leve oxidação
  • Nota: 7/12

Aparência

  • Percepções:
    • Cor amarelo palha a dourado claro
    • Límpida, porém não cristalina (leve turbidez)
    • Espuma branca, densa, de ótima formação e retenção, com aspecto cremoso
  • Nota: 3/3

Sabor

  • Percepções:
    • Malte presente (pão, biscoito, cereal) com leve dulçor
    • Lúpulo floral e herbal em baixa intensidade
    • Frutado lembrando drupas (pêssego, damasco)
    • Amargor baixo, final seco
    • Leve acidez acompanhada de notas de oxidação (caramelo e mel)
  • Nota: 11/20

Sensação na boca

  • Percepções:
    • Corpo médio-baixo a baixo
    • Carbonatação média-alta, conferindo vivacidade
    • Sem adstringência, sem aquecimento alcoólico
    • Secura perceptível, o que impacta na cremosidade e na maciez
  • Notas:
    • Gabriela: 4/5 (descontou pela falta de cremosidade)
    • Henrique: 5/5

Impressão geral

  • Conclusão:
    Cerveja honesta, dentro do estilo, mas afetada por problemas técnicos como leve oxidação e acidez inesperada. A secura excessiva reduz um pouco a drinkabilidade.
  • Sugestões:
    • Analisar e ajustar o perfil da água (evitar uso de água não tratada)
    • Minimizar exposição ao oxigênio após fermentação e no envase
    • Melhorar relação malte/água para aumentar o corpo
    • Revisar o uso de lúpulo fresco e sua influência no perfil sensorial
  • Notas:
    • Gabriela: 6/10
    • Henrique: 6/10

Pontuação Final

  • Gabriela: 30 pontos
  • Henrique: 32 pontos

Classificação BJCP: Muito boa – dentro do estilo, mas com algumas falhas perceptíveis.

Bastidores da produção: desafios e aprendizados

  • A cerveja foi feita em um evento coletivo, com uso de lúpulo fresco da plantação experimental do CEAB.
  • A água utilizada era de poço, sem análise, ajustada empiricamente com ácido lático na brassagem.
  • Levedura Safale US-05 em terceira geração, sem cultivo prévio, o que pode ter contribuído para a esterificação excessiva.
  • O lúpulo Brewers Gold foi colhido no dia, sem parâmetros precisos de alfácido, o que dificultou o controle do amargor.
  • A leve acidez pode ter origem na acidificação mal calculada da água ou em fermentação com micro-organismos indesejados.

Considerações finais dos juízes:

Apesar dos desafios, a cerveja ficou boa, bebível e dentro do estilo. O feedback técnico permite que Taylor melhore sua próxima brassagem, especialmente nos controles de água, fermentação e oxigênio.

Conclusão: como avaliar cervejas e evoluir como cervejeiro caseiro

O Dia do Julgamento não se pretende como mero exercício de análise de amostras. É uma aula sobre como avaliar cerveja artesanal, entender seus defeitos e acertos, e usar o feedback como ferramenta de evolução.

Taylor, com quase 10 anos de experiência como cervejeiro caseiro, mostra que, mesmo depois de muita prática, cada brassagem traz novos aprendizados — especialmente quando lidamos com variáveis pouco controladas como água desconhecida ou lúpulo fresco.

✅ O aprendizado aqui vale para qualquer cervejeiro caseiro: controle rigoroso da água, da fermentação e da oxidação são fundamentais para transformar uma boa cerveja em uma excelente cerveja.

#280 – Como coletar microrganismos selvagens para fermentação espontânea de cerveja

A Hora Ácida

A Hora Ácida #5 com Henrique Boaventura e Diego Simão (Cozalinda)

As cervejas selvagens de fermentação espontânea conquistaram espaço entre os estilos mais intrigantes e complexos da cena artesanal. Neste episódio, Henrique Boaventura recebe novamente Diego Simão, da Cervejaria Cozalinda, para uma verdadeira aula sobre coleta de microrganismos selvagens — aqueles que não vêm de pacotinho, mas sim do meio ambiente, frutas, flores e até do mel de abelhas nativas.

O episódio também conta com relatos do Rodrigo Jardini (da Yarun Fermentados) e da pesquisadora Carola Carvalho (Space Beer Project).

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, prepare-se para uma jornada ácida, cheia de cuidado técnico e que pode abrir caminho para experiências sensoriais únicas!

O que são microrganismos selvagens e onde encontrá-los?

Antes de existirem cepas isoladas e vendidas comercialmente, todas as fermentações eram conduzidas por microrganismos presentes nos utensílios, ingredientes ou no próprio ambiente. As cervejas ácidas de fermentação espontânea ainda se baseiam nesse princípio ancestral: captar leveduras selvagens e bactérias do meio ambiente e deixá-las fazer o trabalho de fermentação.

Esses microrganismos estão por toda parte, mas há locais que oferecem maior probabilidade de captura eficaz:

  • Fontes de açúcar simples, como frutas, tubérculos ou flores, são os ambientes mais promissores.
  • Ambientes historicamente fermentativos, como engenhos de farinha ou colmeias, oferecem colônias já estabelecidas.
  • O ar também pode carregar microrganismos, mas sua taxa de inóculo é imprevisível.

Exemplos práticos de coleta: mandioca, frutas, ar e mel

Projeto Manipueira: a mandioca como meio vivo

Um dos destaques da Cozalinda é a Manipueira Selvagem, feita com suco de mandioca (manipueira) fermentado espontaneamente. Ao coletar esse suco em engenhos centenários, onde a mandioca é processada com madeiras antigas, cria-se um ambiente propício à coleta de microrganismos adaptados.

Importante: a manipueira usada não é adicionada à cerveja, mas sim utilizada como meio de fermentação e propagação inicial.

Mosto exposto ao ar: técnica arriscada

Durante um período, muitos cervejeiros tentaram expor mosto resfriado ao ar em ambientes naturais. Embora pareça romântico (e até remeta às Lambics belgas), esse método apresenta baixa taxa de sucesso e alto risco sanitário. A falta de controle sobre o tipo e quantidade de microrganismos que se instalam compromete a segurança e o resultado sensorial da cerveja.

Frutas como meio de coleta

As frutas são excelentes candidatas: carregam açúcar, e muitas vezes já estão colonizadas por leveduras selvagens e outros microrganismos. O ideal é coletar frutas frescas, amassá-las com luvas higienizadas e colocá-las para fermentar em suco pasteurizado ou mosto resfriado. Evite frutas com bolores visíveis — micro-organismos oxidativos tendem a ser indesejados.

Existem duas abordagens:

  • Coleta ativa, onde a fruta é usada como inoculante primário num meio (mosto ou suco).
  • Adjunto fermentativo, onde a fruta inteira é adicionada à cerveja pronta, como nas Lambics com frutas. Essa técnica adiciona novos açúcares e microrganismos, alterando o perfil sensorial da bebida.

Boas frutas para coletar:

  • Jabuticaba
  • Araçá
  • Amora
  • Framboesa
  • Cereja

Frutas com sementes grandes (como pitanga) podem gerar adstringência ou liberar substâncias indesejadas como ácido cianídrico.

Frutas, flores, pólen e ceiva como fontes microbianas

Flores

Flores são ricas em microrganismos graças à presença de açúcares e ao trânsito de insetos. Apesar disso, a coleta direta a partir de flores exige cuidados laboratoriais — preferencialmente com isolamento em meio de cultura, como ágar. A baixa quantidade de açúcares e a diversidade microbiana tornam o processo mais técnico e menos previsível.

Pólen

O pólen de abelhas nativas é um meio altamente promissor. A pesquisadora Carola Carvalho, do Space Beer Project, destaca que ele contém leveduras específicas da colmeia, capazes de fermentar espontaneamente. O uso exige cuidado, pois poucas delas são Saccharomyces e nem todas geram resultados sensoriais agradáveis.

Ceiva de árvores

Em regiões como Escandinávia e Itália, a ceiva (como a do maple) é usada na produção de bebidas fermentadas. Com baixo teor de açúcar, ela exige concentrações e coletas específicas. Apesar de menos comum, é uma fonte viável de microrganismos.

Mel de abelhas nativas: um campo fértil de fermentações

Diego Simão compartilha sua experiência com abelhas mirim e mandaçaia. O mel dessas abelhas, com menor teor de açúcar e maior umidade, fermenta com facilidade. Após coleta com seringas sanitizadas, o mel é propagado sucessivamente em suco de maçã pasteurizado e depois em mosto, até alcançar uma colônia estável.

Rodrigo, da Yarun Fermentados, também utiliza mel de abelhas tubuna, propagando os microrganismos em mosto lupulado e posteriormente em mosto mais neutro. A escolha do meio interfere diretamente no tipo de levedura selecionada e no resultado sensorial final.

Etapas e cuidados fundamentais na coleta

Equipamentos e higiene

  • Luvas, frascos de vidro esterilizados, seringas novas e airlocks são obrigatórios.
  • O uso de equipamentos inadequados pode comprometer toda a coleta.

Preparo do meio de propagação

  • Adicionar álcool (3–5%) ao mosto ajuda a inibir microrganismos patogênicos.
  • Ajustar o pH para cerca de 4,5 é outra medida de segurança.
  • Mostos com diferentes níveis de IBU permitem selecionar perfis específicos (mais ou menos acidez, mais resistência bacteriana, etc).

Propagações sequenciais e análise sensorial

  • Nunca use a primeira fermentação diretamente na cerveja final.
  • Realize de 2 a 5 propagações em meios diferentes.
  • Avalie o perfil sensorial, fermentativo e estabilidade antes de escalar a produção.

Conclusão: ciência, cuidado e criatividade na coleta selvagem

A coleta de microrganismos selvagens para uso cervejeiro exige muito mais do que “abrir a janela e esperar a mágica acontecer”. Ela demanda conhecimento técnico, cuidado com a segurança alimentar e, principalmente, paciência. Seja com frutas, flores, mel ou mandioca, cada meio oferece desafios e oportunidades únicas de expressão sensorial.

Como reforçado por Diego, Rodrigo e Carola, é preciso entender que fermentação espontânea não significa ausência de método, mas sim respeito à diversidade da natureza, com técnica e propósito. No fim das contas, como diz Henrique, tudo tem um começo — e ele pode estar em uma jabuticabeira no quintal, num engenho centenário ou numa colmeia urbana.